segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

(esta é uma história minha e que conto em segunda mão)

Vou começar por falar do meu avô, ele, pai da minha mãe e filho de um republicano e de uma católica. Este homem que nasceu em Afife numa casa de lavoura não muito abastada mas com o seu quinhão, veio em 1907, com oito anos, para o Porto, como era uso na época, para trabalhar nas obras. Os tempos eram difíceis e os rapazes tinham de aprender de pequenos a arte. Claro está que da arte só os que levavam jeito aprendiam. O meu avô não era só jeito, mas fibra, e a tal da arte levou-o a conhecer o mundo. Fez-se homem e fez-se à vida. Era duro e sabia ler. Lia bem demais.
Com ele aprendi a amar os livros e a querer ler o que os outros não liam.
Quando nasci já ele vivia em casa no sossego da família e andava perto dos setenta. Morreu aos oitenta e um, vítima de doença quase prolongada, numa manhã de um Outubro ainda quente.
Era forte e fibroso. Bonito. Lembro-me que se vestia, todas as tardes, com fato completo e botões de punho

Hábitos de uma capital de muitos anos. A casa na Graça, depois Benfica, a Travessa dos Arneiros, a carpintaria de móveis, as noites de teatro, as férias de verão em Afife, a minha mãe pequena, a minha mãe órfã de mãe, a minha mãe namoradeira.

e ia até ao café junto da estação dos caminhos de ferro para a cavaqueira com os companheiros da política. Sempre aprumado. Sempre lavado e cheiroso. À noite, em casa, conversava com o meu pai e quando a minha mãe tentava acrescentar palavra, feminista como pretendia ser, ele respondia em tom solene, muito embora brilhasse uma ponta grossa do orgulho que sentia por ela: "a menina não foi chamada ao assunto e isto é assunto de homens." Respeito era bonito e ele gostava. Quisera que ela fosse professora, médica ou qualquer outra coisa e não, como dizia, "empregada do marido." A minha mãe tonta, como são tontas as raparigas, engravidou de mim aos dezoito anos e não quis continuar a estudar. Casou com o meu pai, que de imediato marchou para Moçambique, e ficou comigo e com o meu avô.
O meu avô dizia-me sempre para fazer mais além, para querer mais além, para ler mais além

Lá em casa ainda (e espero que para sempre) estão nas estantes "Felizmente Há Luar" de Stau Monteiro, "O Judeu" do Santareno e deles outros e uma velhíssima edição de "O Capital". Este está forrado com papel azul-escuro de data desconhecida.
e eu fui mais além da curva da estrada.
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O meu avô, ainda jovem, viu a casa-mãe ser vendida em praça pública. A minha bisavó, após a morte do pai e a fuga do marido para o estrangeiro, viu-se a braços com a casa e quatro filhos. Daí à falência foi um passo. A casa foi vendida ao ferreiro que, por sua vez, anos depois, perdeu a dele também em praça pública. O meu avô já homem propôs rematar a casa do ferreiro com a condição de uma troca, o que foi imediatamente aceite.
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E foi assim que nasci na casa que o meu bisavô construiu e que ainda hoje permanece na família e tem paredes de granito e muitas histórias para contar.
É para lá que vou todos os fins-de-semana, ou melhor, sempre que tenho tempo. Corro para manter aquela casa na família e incutir no meu sobrinho de seis anos esse espírito de lealdade para consigo e para com as raízes.

Não falo de bens materiais, falo da história que se faz a cada momento, em cada pedacinho. Falo da vida e das coisas importantes.
Talvez seja a consciência destes vínculos que me faz falar uma linguagem lá de longe.

4 comentários:

Unknown disse...

Hoje percebi mais além...

Rafeiro Perfumado disse...

Só encontro uma pequena incongruência no discurso do teu avô, desculpável pelos tempos que corriam. É que querer que a tua mãe estudasse e fosse independente não jogava muito com o retirar-lhe o direito a opinar sobre os "assuntos de homem".

Beijoca, adorei o texto.

Anónimo disse...

As raizes nem sempre nos prendem ao chão, mas nos dão sustentáculos para um futuro melhor. E seu pai, como seu avô e hoje você sabem disso.

AC disse...

uma verdade simples.