domingo, 18 de janeiro de 2009

MARIA

Nasci a 14 de Janeiro de 1922 e o meu nome é Maria. Nasci numa casa onde as mulheres abundavam e eu era mais uma. Cresci a ser mulher na casa onde o meu pai ficou sem a minha mãe depois que ela abalou para a outra casa e vi, na casa onde eu fiquei, o meu pai partir já velho. As casas eram os meus mundos e entre elas o trajecto diário da minha mãe. A tia, de nome pátrio de uma pátria que não era a dela, ficava comigo enquanto fui ficando sem a minha mãe perto de mim. Casei num ano de que não me lembro com um homem que não poderei esquecer. Com ele fui casada desde sempre e fiquei casada para sempre. Fui mãe de homens a contrariar a tradição como sempre foi meu o dote. O meu pai era ateu. Acreditava apenas nele e em mais alguns como ele. A minha herança – o meu pai descrente das coisas celestes. E eu respeitava-as o suficiente para cumprir as imposições. Casei-me e um padre abençoou, baptizei os rapazes, baptizei as netas e os netos e os bisnetos

Não amei a deus sobre todas as coisas

enterrei os mortos, dei de comer a quem tinha fome, de beber a quem tinha sede, vesti os nus, abri a minha casa a quem vinha por bem, assisti aos enfermos

amei o próximo sobre todas as coisas

casei virgem e entreguei o meu corpo em núpcias àquele de quem fui sempre a mulher. Não pela castidade mas por ele. Enterrei-o e chorei-o. E vi a vida levar-me um fardo de gente que amei. Pai, mãe, marido, neto e tantos outros que me fecharam os olhos e descansaram em paz – essa morte que tive nas mãos tantas vezes, a morte dos que decidiram ir –

essa morte que se me atravessa agora, essa morte que me assusta. Por isso me agarro à vida. O corpo que foi jovem e fresco e velho agora vai abandonando a minha determinação, mas eu não vou fechar os olhos. Eu não vou dormir. Vou continuar a falar sobre mim – a velha árvore que não falha, resiste aos vendavais que assolam os outros e permanece de pé, curvada, mas de pé.

Fui feliz com o meu homem. Fui feliz com os meus rapazes. Vi um deles partir para a guerra e voltar são e salvo. Vinha num navio branco. Era tão jovem, tão cheio de vida. Fui avó aos quarenta e dois anos. Era uma avó de mulheres. Fui avó de dois homens e perdi um.

Agora estou aqui cheia de tubos, a ouvir o bip agudo da máquina e os médicos numa ligeireza à minha volta. Há um burburinho que não identifico porque estou surda e ninguém me pôs o aparelho hoje. Sei que são médicos e enfermeiros e um bloco operatório. Estou a morrer por dentro e não quero. É o coração que sempre foi fraco e não fosse eu forte já ele me tinha despachado. Mas não, afinal quem aqui manda ainda sou eu.

As minhas netas mais velhas, as três primeiras, passavam tempos lá em casa. Eram as meninas, as minhas meninas. Fazia-lhes vestidos de malha na máquina de tricotar que comprei na Singer. Hoje em dia, a minha terceira neta desenha vestidos de malha, a primeira é engenheira agrónoma e a segunda é advogada. As minhas outras três netas são quase da mesma idade. E o rapaz, o que ficou, é o mais novo e vai para a Ilha da Madeira casar com uma moça bonita. Os meus meninos. Os meus mais velhos são três. Casados com três boas mulheres. O mais novo é o meu amor. O coração traiu-o e num encontrão atirou-o para uma cadeira de rodas e os médicos dizem que é um milagre estar vivo. Eu, como o meu pai, não acredito em milagres.

Acho que o coração quer parar. O meu corpo está velho. Estão a mexer-me em tudo. Não querem que eu morra e eu não quero morrer. Os órgãos estão a parar por falta de um coração hábil. Essa bomba, o músculo cardíaco, o miocárdio, esta coisa que bate e bombeia sangue para alimentar o corpo, está querer parar. Mas eu aguento.

Nasci depois da primeira guerra mas antes da grande depressão de 1929. Era menina e não senti a diferença. O país era pobre e não havia grande coisa para desejar. O meu pai levava-me de comboio à cidade e, em chegados, percorríamos as ruas com sorrisos de criança – eu, porque era criança e ele, porque de velho só tinha as mãos – e levava-me ao salão de chá onde me encantavam os chapéus das senhoras que, sentadinhas, conversavam e levavam com delicadeza a borda da chávena a tocar os lábios finos cor de carmim. Mais tarde, fui elegante como elas. Ainda na semana passada fui ao cabeleireiro. Agora fico muito calada quando me sento para que me penteiem. Desde que me aconteceu perder a capacidade de falar não falo com desconhecidos. Mas também para quê, se não me percebem?

Nasceram três bisnetos. Dois rapazes e uma rapariga. Tratam-me por “bisa”, mas já pouco se repete. Já não lhes tricoto vestidos. Nada se perde, tudo se transforma. É a natureza das coisas e desta coisa estranha que é a vida e que eu e o meu pai não entendemos. Ele de mão dada comigo a percorrer as ruas da cidade com sorrisos de criança de cara contra o vento e contra o tempo.

Ainda aqui estou e já me resolveram os estragos – por agora. O meu corpo adormecido, emoldurado por lençóis esterilizados é transportado, já sem pressas, de volta à enfermaria. E eu, que pensava que morria, ainda aqui estou colada a ele. Hei-de morrer um dia.

Mas por enquanto mato eu a morte.

2 comentários:

Ƭ. disse...

Meu Deus.

É intenso.

:)

Unknown disse...

Uma história de vida...bem contada...