terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Em 1972, no Verão


"Sonhei que me tinha sido atribuído o Prémio Nobel da Paz por eu ter inventado um aspirador que não só não fazia barulho nenhum como até tocava uma música lindíssima quando estava a trabalhar. Além disso, era o melhor aspirador que alguma vez se inventara."



Ana Hatherly, Anacrusa – 68 sonhos, Cosmorama Edições

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

estigmatismo


os gigantes velhos adormeciam ao som das canções de embalar.

domingo, 6 de setembro de 2009

anestesia ou a vã glória de marchar

A polícia entrou na sala de espera. Havia dois agentes de sexos diferentes. Tinham a farda suja e cheiravam a hortelã. A polícia olhou para ambos, pelo canto do olho. Não havia nada a fazer. O cheiro espalhava-se pelo corredor arrastando consigo a atenção alheia. A intenção dos agentes era contaminar. A polícia observou atentamente cada detalhe. Acomodou a máquina de escrever e abriu o inquérito. Os agentes, envergonhados, baixaram os olhos. Não havia mesmo nada a fazer. A população inalava. Dentro de pouco tempo seria considerada uma pandemia. A polícia terminou o relato e desligou o transístor. A secretária baixou as persianas, desligou a luz no quadro e fechou as portas à chave despedindo-se do porteiro. Mais tarde soube-se que tudo não passou de um boato.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

um caça-bombardeiro só tem um lugar

o meu voo é picado e tomo café sozinha. não construo hangares aos quais teria de regressar ao fim do dia. a batalha é campal e sob o signo de Lillith. não vejo o mundo com bons olhos e também não o vejo com maus, vejo-o com os meus. abeiro quem se abeira de mim e não permito encostos. durmo de pálpebras coladas e ouvidos acesos. e tenho dois gatos e as mãos muito sujas do pó de giz.
não as lavo.
as pontas dos dedos doem porque secaram.
as lágrimas também.
não sei chorar.
não sei se sei abrir o jogo.

faço bluff e uma salada de massa....

....pim

quarta-feira, 27 de maio de 2009

message in a green bottle


I left it before to say goodbye

terça-feira, 19 de maio de 2009

dezanove de maio de dois mil e nove

...............................................
dentro do novelo há pontas soltas
às voltas
e cada volta da memória solta um nó
cego
dentro do copo e do corpo nas pontas de um pé quebrável
a cada volta
como se o tempo fugisse solto de um nó
na ponta
dos dedos

se as margens do rio fossem um novelo de água e areia fina
sem margens nem dúvidas
nem pontas soltas
e a memória um nó cego dentro do corpo inquebrável

os meus dedos fugiriam a cada volta
............................................

sábado, 9 de maio de 2009

o poder


quarta-feira, 6 de maio de 2009

Roubar palavras

Temos o voo do coração na ponta dos dedos e depressa abrimos a mão que o pendura em silêncio

sem que ninguém se assuste com o bater das asas

Cruel é a tarde de calor absoluto dentro de um caixão bafiento

- E é perversa a forma exagerada como a cidade pendurou ao pescoço seus filamentos de néon enquanto as nuvens ainda fiam a ténue luminosidade do crepúsculo

Cruel é querer mais além quando nos ossos guardamos a essência do voo e na pele a solidão de muitos caminhos

Vivemos com a obsessão de um rio a desaguar no amanhecer

Entre os olhos um fio de metal cortante e a balbuciar, dentro do sonho, as palavras que nunca ousaremos dizer

postas em fuga numa insónia recomeçada pelos alicerces calcários da cidade ou pelos passos gravados nas areias da memória

Só o mar das outras terras é que é belo, dizias

e eu nada sei desses mares por fabricar

Chamaremos nomes às coisas ou poderemos monologar com as paredes de dar-lhes as cores desbotadas das laranjas


A cidade dorme enquanto começo o jogo e antes que a flor de açafrão rompa a pele das pedras

E já é tarde para reverter a crosta da terra
nem que eu viva para pronunciar o teu amargo nome
porque nem mesmo o inflexível rigor da morte exterminará
[o lado escondido das ilhas que amo]
o gelo calado das minhas mãos.



(a partir de Al Berto)

terça-feira, 28 de abril de 2009

sexta-feira, 17 de abril de 2009

na volta do correio


irreversível.

Não voltes a dizer a fome, até porque a língua te atrapalha.



Desliza as mãos pelos ombros depois de te demorares na nuca e nunca digas que entardeceu. As memórias estalam assim que vazias, como o plástico pobre estala pela acção do sol. Disseram-me que te perdeste em dedilhos de guitarra e em juras mais a norte. Vais ficar aqui, onde te coloco para seres feliz e não vais enterrar os dedos na cavidade da minha nuca. A nossa distância ficou a dois passos e tocámo-nos duas ou três vezes com a ponta dos dedos numa noite inquieta. Quatro cigarros e o bastante para me pores a andar. O bastante já era nada: dois desequilíbrios na casa velha, por entre as paredes cobertas de areia seca e tempo, e o soalho podre por onde o mesmo tempo jurava passar. As mesmas juras do teu norte pelos dedilhos de guitarra. E já não a tua, a guitarra que não era guitarra e que eram dedos enterrados na minha nuca. Ensopámos a memória com formas caprichosas cinzeladas na madeira e afastámos a distância de dois passos para calcular o tempo das palmeiras.
Entre nós, um balouçar de três dedos e a lâmina da navalha.

quinta-feira, 9 de abril de 2009


[Now he's gone, I don't know why. And till this day, sometimes I cry. He didn't even say goodbye. He didn't take the time to lie.

Bang bang, he shot me down. Bang bang, I hit the ground. Bang bang, that awful sound. Bang bang, my baby shot me down...]

quinta-feira, 2 de abril de 2009

the same old story

- God dammit, what did you do to my wife?

- Well, on a scale of one to ten... ten being the most depraved act of sexual theatre know to man... one being your average Friday night run-through at the Lomaxes' household... I'd say, not to be immodest, Mary Ann and I got it on at about...
... seven.

domingo, 29 de março de 2009

MALDOROR ou A HISTÓRIA INTERMINÁVEL

( tinta da china sobre papel)


* Mão Morta

terça-feira, 24 de março de 2009

Só quem saltasse o grande muro poderia ver no escuro o puro amor. E a cidade que venera novidades pôs-se aos saltos por aí e foi tropeçar, bêbada, no seu bordel. Só quem saltasse o puro escuro poderia ver no muro o grande amor. E a cidade que venera novidades pôs-se às cegas por aí e foi descambar, bêbada, na contramão. Só quem pudesse amar um muro ia andar assim no escuro a saltar. E a cidade que venera novidades beijou prédios, vedações, bancos, transacções, bêbada de construcções. Só quem amasse o escuro puro poderia ter um muro para saltar. E a cidade que venera novidades ergueu novas catedrais, naves espaciais, bêbada de tanto céu. Só quem amasse o puro salto lá do muro escuro e alto ia amar. E a cidade que venera novidades nunca pode resistir. Teve de explodir, bêbada, até ao fim.
JPSimões


segunda-feira, 9 de março de 2009

(pastel sobre cartolina preta)


"Schiavo Morente"

quinta-feira, 5 de março de 2009




-What about the letter you wrote me, is that a lie, too?
-No, I wrote the letter.
-Well what did it say?
-It said 'Dear Mister Brenner, I think you need these lovebirds after all. They may help your personality.'
-But you tore it up?
-Yes.
-Why?
-Because it seemed stupid and foolish.
-Like jumping into a fountain in Rome?
-I told you what happened!
-You don't expect me to believe that, do you?
-Oh, I don't give a damn what you believe!
-I'd still like to see you.
-Why?
-I think it might be fun.
-Well it might have been good enough in Rome, but it's not good enough now.
-It is for me.
-Well not for me!
-What do you want?
-I thought you knew! I want to go through life jumping into fountains naked, good night!

domingo, 1 de março de 2009

Boa noite, príncipe

Já há muito que não te “oiço” nem “vejo”, por isso decidi “falar”. É para te dizer que as amendoeiras ainda estão em flor; que Março volta de novo; que a vida por cá se ajeita; que as manhãs estão cada vez mais suaves e as noites também; que a Primavera apetece e com ela os frutos maduros do Verão; que a noite esconde os sorrisos e mostra os dentes e o dia faz o inverso. E para te dizer tudo isto escolhi entoar uma canção de silêncios e abrir o ferrolho enferrujado do coração.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009




“All that we see or seem, is but a dream within a dream”







Edgar Allan Poe

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Tirupur, 2006

"a venda dos deuses"

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

prever cidades


há os que se afogam no Porto


outros em vinagre

tu
a que ficará para sempre colada às páginas de um qualquer
phodário


que pena. parecias tão especial. percebo agora as razões dos que foram teus homens.

“Clotilde” diz-te alguma coisa?
foi a que teve em tempos
um tal gajo que
viveu com uma tarada



a partir de SMS perverso

sábado, 31 de janeiro de 2009

dissecar


Havendo o vento, pouca coisa há.
Um dedo açucarado
[1] se derrete
mexendo a minha vida como o chá.
Sobram notas de chuva de um trompete

Ao dizer, sei lá porquê, sei lá?:
“É isso, a história quase se repete”.
(Tenho um gato cor de rosa, como o Xá,
e alimento-o a damascos e sorvete).
..

Eu sempre fiz aquilo que não quis
mas sempre o que tive de fazer
me deixou constrangido e infeliz. ..

Hoje mesmo, farei o que puder.
E só coloco as mão nos quadris
para abrir mais os olhos ao morrer


[1] O teu… com que provas tudo!!


in Sonetos Perversos, Joaquim Pessoa

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009



"...
(não sei se gosto de ti Maria Adelaide, não devo gostar, era o meu irmão quem gostava, olha as gaivotas para aqui e para ali e um prato a quebrar-se no chão, por que motivo não ficaram os dois na herdade pisando o trigo seco, felizes?)
a Trafaria arbustos dunas silêncio, o que restava do pontão mais adivinhado que visto pelos reflexos da água, a prima Hortelinda a chamar-me
- Tu
a prevenir
- Olha que não podes afogar-te porque não constas do livro
à medida que eu ultrapassava o que me pareceu um balde, um rolo de cordas que desviei sem dar fé e como não consto do livro
(a prima Hortelinda
- Quantas vezes é preciso dizer que não constas do livro?)
agaichei-me de bochechas nas palmas a pensar
- Daqui a nada é manhã
e não será manhã nunca."


António Lobo Antunes, O Arquipélago da Insónia (edição ne varietur)

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

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a morte é individual e estéril
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cansada, fechei os olhos
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22 de Janeiro de 2009
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domingo, 18 de janeiro de 2009

MARIA

Nasci a 14 de Janeiro de 1922 e o meu nome é Maria. Nasci numa casa onde as mulheres abundavam e eu era mais uma. Cresci a ser mulher na casa onde o meu pai ficou sem a minha mãe depois que ela abalou para a outra casa e vi, na casa onde eu fiquei, o meu pai partir já velho. As casas eram os meus mundos e entre elas o trajecto diário da minha mãe. A tia, de nome pátrio de uma pátria que não era a dela, ficava comigo enquanto fui ficando sem a minha mãe perto de mim. Casei num ano de que não me lembro com um homem que não poderei esquecer. Com ele fui casada desde sempre e fiquei casada para sempre. Fui mãe de homens a contrariar a tradição como sempre foi meu o dote. O meu pai era ateu. Acreditava apenas nele e em mais alguns como ele. A minha herança – o meu pai descrente das coisas celestes. E eu respeitava-as o suficiente para cumprir as imposições. Casei-me e um padre abençoou, baptizei os rapazes, baptizei as netas e os netos e os bisnetos

Não amei a deus sobre todas as coisas

enterrei os mortos, dei de comer a quem tinha fome, de beber a quem tinha sede, vesti os nus, abri a minha casa a quem vinha por bem, assisti aos enfermos

amei o próximo sobre todas as coisas

casei virgem e entreguei o meu corpo em núpcias àquele de quem fui sempre a mulher. Não pela castidade mas por ele. Enterrei-o e chorei-o. E vi a vida levar-me um fardo de gente que amei. Pai, mãe, marido, neto e tantos outros que me fecharam os olhos e descansaram em paz – essa morte que tive nas mãos tantas vezes, a morte dos que decidiram ir –

essa morte que se me atravessa agora, essa morte que me assusta. Por isso me agarro à vida. O corpo que foi jovem e fresco e velho agora vai abandonando a minha determinação, mas eu não vou fechar os olhos. Eu não vou dormir. Vou continuar a falar sobre mim – a velha árvore que não falha, resiste aos vendavais que assolam os outros e permanece de pé, curvada, mas de pé.

Fui feliz com o meu homem. Fui feliz com os meus rapazes. Vi um deles partir para a guerra e voltar são e salvo. Vinha num navio branco. Era tão jovem, tão cheio de vida. Fui avó aos quarenta e dois anos. Era uma avó de mulheres. Fui avó de dois homens e perdi um.

Agora estou aqui cheia de tubos, a ouvir o bip agudo da máquina e os médicos numa ligeireza à minha volta. Há um burburinho que não identifico porque estou surda e ninguém me pôs o aparelho hoje. Sei que são médicos e enfermeiros e um bloco operatório. Estou a morrer por dentro e não quero. É o coração que sempre foi fraco e não fosse eu forte já ele me tinha despachado. Mas não, afinal quem aqui manda ainda sou eu.

As minhas netas mais velhas, as três primeiras, passavam tempos lá em casa. Eram as meninas, as minhas meninas. Fazia-lhes vestidos de malha na máquina de tricotar que comprei na Singer. Hoje em dia, a minha terceira neta desenha vestidos de malha, a primeira é engenheira agrónoma e a segunda é advogada. As minhas outras três netas são quase da mesma idade. E o rapaz, o que ficou, é o mais novo e vai para a Ilha da Madeira casar com uma moça bonita. Os meus meninos. Os meus mais velhos são três. Casados com três boas mulheres. O mais novo é o meu amor. O coração traiu-o e num encontrão atirou-o para uma cadeira de rodas e os médicos dizem que é um milagre estar vivo. Eu, como o meu pai, não acredito em milagres.

Acho que o coração quer parar. O meu corpo está velho. Estão a mexer-me em tudo. Não querem que eu morra e eu não quero morrer. Os órgãos estão a parar por falta de um coração hábil. Essa bomba, o músculo cardíaco, o miocárdio, esta coisa que bate e bombeia sangue para alimentar o corpo, está querer parar. Mas eu aguento.

Nasci depois da primeira guerra mas antes da grande depressão de 1929. Era menina e não senti a diferença. O país era pobre e não havia grande coisa para desejar. O meu pai levava-me de comboio à cidade e, em chegados, percorríamos as ruas com sorrisos de criança – eu, porque era criança e ele, porque de velho só tinha as mãos – e levava-me ao salão de chá onde me encantavam os chapéus das senhoras que, sentadinhas, conversavam e levavam com delicadeza a borda da chávena a tocar os lábios finos cor de carmim. Mais tarde, fui elegante como elas. Ainda na semana passada fui ao cabeleireiro. Agora fico muito calada quando me sento para que me penteiem. Desde que me aconteceu perder a capacidade de falar não falo com desconhecidos. Mas também para quê, se não me percebem?

Nasceram três bisnetos. Dois rapazes e uma rapariga. Tratam-me por “bisa”, mas já pouco se repete. Já não lhes tricoto vestidos. Nada se perde, tudo se transforma. É a natureza das coisas e desta coisa estranha que é a vida e que eu e o meu pai não entendemos. Ele de mão dada comigo a percorrer as ruas da cidade com sorrisos de criança de cara contra o vento e contra o tempo.

Ainda aqui estou e já me resolveram os estragos – por agora. O meu corpo adormecido, emoldurado por lençóis esterilizados é transportado, já sem pressas, de volta à enfermaria. E eu, que pensava que morria, ainda aqui estou colada a ele. Hei-de morrer um dia.

Mas por enquanto mato eu a morte.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

intemporalidade

pinhole, negativo em papel

Data

Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça


Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

aos que partem



Cântico IV


Tu tens um medo:

Acabar.

Não vês que acabas todo dia.

Que morres no amor.

Na tristeza.

Na dúvida.

No desejo.

Que te renovas todo dia.

No amor.

Na tristeza.

Na dúvida.

No desejo.

Que és sempre outro.

Que és sempre o mesmo.

Que morrerás por idades imensas.

Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

Cecília Meireles

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

(esta é uma história minha e que conto em segunda mão)

Vou começar por falar do meu avô, ele, pai da minha mãe e filho de um republicano e de uma católica. Este homem que nasceu em Afife numa casa de lavoura não muito abastada mas com o seu quinhão, veio em 1907, com oito anos, para o Porto, como era uso na época, para trabalhar nas obras. Os tempos eram difíceis e os rapazes tinham de aprender de pequenos a arte. Claro está que da arte só os que levavam jeito aprendiam. O meu avô não era só jeito, mas fibra, e a tal da arte levou-o a conhecer o mundo. Fez-se homem e fez-se à vida. Era duro e sabia ler. Lia bem demais.
Com ele aprendi a amar os livros e a querer ler o que os outros não liam.
Quando nasci já ele vivia em casa no sossego da família e andava perto dos setenta. Morreu aos oitenta e um, vítima de doença quase prolongada, numa manhã de um Outubro ainda quente.
Era forte e fibroso. Bonito. Lembro-me que se vestia, todas as tardes, com fato completo e botões de punho

Hábitos de uma capital de muitos anos. A casa na Graça, depois Benfica, a Travessa dos Arneiros, a carpintaria de móveis, as noites de teatro, as férias de verão em Afife, a minha mãe pequena, a minha mãe órfã de mãe, a minha mãe namoradeira.

e ia até ao café junto da estação dos caminhos de ferro para a cavaqueira com os companheiros da política. Sempre aprumado. Sempre lavado e cheiroso. À noite, em casa, conversava com o meu pai e quando a minha mãe tentava acrescentar palavra, feminista como pretendia ser, ele respondia em tom solene, muito embora brilhasse uma ponta grossa do orgulho que sentia por ela: "a menina não foi chamada ao assunto e isto é assunto de homens." Respeito era bonito e ele gostava. Quisera que ela fosse professora, médica ou qualquer outra coisa e não, como dizia, "empregada do marido." A minha mãe tonta, como são tontas as raparigas, engravidou de mim aos dezoito anos e não quis continuar a estudar. Casou com o meu pai, que de imediato marchou para Moçambique, e ficou comigo e com o meu avô.
O meu avô dizia-me sempre para fazer mais além, para querer mais além, para ler mais além

Lá em casa ainda (e espero que para sempre) estão nas estantes "Felizmente Há Luar" de Stau Monteiro, "O Judeu" do Santareno e deles outros e uma velhíssima edição de "O Capital". Este está forrado com papel azul-escuro de data desconhecida.
e eu fui mais além da curva da estrada.
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O meu avô, ainda jovem, viu a casa-mãe ser vendida em praça pública. A minha bisavó, após a morte do pai e a fuga do marido para o estrangeiro, viu-se a braços com a casa e quatro filhos. Daí à falência foi um passo. A casa foi vendida ao ferreiro que, por sua vez, anos depois, perdeu a dele também em praça pública. O meu avô já homem propôs rematar a casa do ferreiro com a condição de uma troca, o que foi imediatamente aceite.
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E foi assim que nasci na casa que o meu bisavô construiu e que ainda hoje permanece na família e tem paredes de granito e muitas histórias para contar.
É para lá que vou todos os fins-de-semana, ou melhor, sempre que tenho tempo. Corro para manter aquela casa na família e incutir no meu sobrinho de seis anos esse espírito de lealdade para consigo e para com as raízes.

Não falo de bens materiais, falo da história que se faz a cada momento, em cada pedacinho. Falo da vida e das coisas importantes.
Talvez seja a consciência destes vínculos que me faz falar uma linguagem lá de longe.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

o poder