sábado, 31 de janeiro de 2009

dissecar


Havendo o vento, pouca coisa há.
Um dedo açucarado
[1] se derrete
mexendo a minha vida como o chá.
Sobram notas de chuva de um trompete

Ao dizer, sei lá porquê, sei lá?:
“É isso, a história quase se repete”.
(Tenho um gato cor de rosa, como o Xá,
e alimento-o a damascos e sorvete).
..

Eu sempre fiz aquilo que não quis
mas sempre o que tive de fazer
me deixou constrangido e infeliz. ..

Hoje mesmo, farei o que puder.
E só coloco as mão nos quadris
para abrir mais os olhos ao morrer


[1] O teu… com que provas tudo!!


in Sonetos Perversos, Joaquim Pessoa

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009



"...
(não sei se gosto de ti Maria Adelaide, não devo gostar, era o meu irmão quem gostava, olha as gaivotas para aqui e para ali e um prato a quebrar-se no chão, por que motivo não ficaram os dois na herdade pisando o trigo seco, felizes?)
a Trafaria arbustos dunas silêncio, o que restava do pontão mais adivinhado que visto pelos reflexos da água, a prima Hortelinda a chamar-me
- Tu
a prevenir
- Olha que não podes afogar-te porque não constas do livro
à medida que eu ultrapassava o que me pareceu um balde, um rolo de cordas que desviei sem dar fé e como não consto do livro
(a prima Hortelinda
- Quantas vezes é preciso dizer que não constas do livro?)
agaichei-me de bochechas nas palmas a pensar
- Daqui a nada é manhã
e não será manhã nunca."


António Lobo Antunes, O Arquipélago da Insónia (edição ne varietur)

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

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a morte é individual e estéril
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cansada, fechei os olhos
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22 de Janeiro de 2009
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domingo, 18 de janeiro de 2009

MARIA

Nasci a 14 de Janeiro de 1922 e o meu nome é Maria. Nasci numa casa onde as mulheres abundavam e eu era mais uma. Cresci a ser mulher na casa onde o meu pai ficou sem a minha mãe depois que ela abalou para a outra casa e vi, na casa onde eu fiquei, o meu pai partir já velho. As casas eram os meus mundos e entre elas o trajecto diário da minha mãe. A tia, de nome pátrio de uma pátria que não era a dela, ficava comigo enquanto fui ficando sem a minha mãe perto de mim. Casei num ano de que não me lembro com um homem que não poderei esquecer. Com ele fui casada desde sempre e fiquei casada para sempre. Fui mãe de homens a contrariar a tradição como sempre foi meu o dote. O meu pai era ateu. Acreditava apenas nele e em mais alguns como ele. A minha herança – o meu pai descrente das coisas celestes. E eu respeitava-as o suficiente para cumprir as imposições. Casei-me e um padre abençoou, baptizei os rapazes, baptizei as netas e os netos e os bisnetos

Não amei a deus sobre todas as coisas

enterrei os mortos, dei de comer a quem tinha fome, de beber a quem tinha sede, vesti os nus, abri a minha casa a quem vinha por bem, assisti aos enfermos

amei o próximo sobre todas as coisas

casei virgem e entreguei o meu corpo em núpcias àquele de quem fui sempre a mulher. Não pela castidade mas por ele. Enterrei-o e chorei-o. E vi a vida levar-me um fardo de gente que amei. Pai, mãe, marido, neto e tantos outros que me fecharam os olhos e descansaram em paz – essa morte que tive nas mãos tantas vezes, a morte dos que decidiram ir –

essa morte que se me atravessa agora, essa morte que me assusta. Por isso me agarro à vida. O corpo que foi jovem e fresco e velho agora vai abandonando a minha determinação, mas eu não vou fechar os olhos. Eu não vou dormir. Vou continuar a falar sobre mim – a velha árvore que não falha, resiste aos vendavais que assolam os outros e permanece de pé, curvada, mas de pé.

Fui feliz com o meu homem. Fui feliz com os meus rapazes. Vi um deles partir para a guerra e voltar são e salvo. Vinha num navio branco. Era tão jovem, tão cheio de vida. Fui avó aos quarenta e dois anos. Era uma avó de mulheres. Fui avó de dois homens e perdi um.

Agora estou aqui cheia de tubos, a ouvir o bip agudo da máquina e os médicos numa ligeireza à minha volta. Há um burburinho que não identifico porque estou surda e ninguém me pôs o aparelho hoje. Sei que são médicos e enfermeiros e um bloco operatório. Estou a morrer por dentro e não quero. É o coração que sempre foi fraco e não fosse eu forte já ele me tinha despachado. Mas não, afinal quem aqui manda ainda sou eu.

As minhas netas mais velhas, as três primeiras, passavam tempos lá em casa. Eram as meninas, as minhas meninas. Fazia-lhes vestidos de malha na máquina de tricotar que comprei na Singer. Hoje em dia, a minha terceira neta desenha vestidos de malha, a primeira é engenheira agrónoma e a segunda é advogada. As minhas outras três netas são quase da mesma idade. E o rapaz, o que ficou, é o mais novo e vai para a Ilha da Madeira casar com uma moça bonita. Os meus meninos. Os meus mais velhos são três. Casados com três boas mulheres. O mais novo é o meu amor. O coração traiu-o e num encontrão atirou-o para uma cadeira de rodas e os médicos dizem que é um milagre estar vivo. Eu, como o meu pai, não acredito em milagres.

Acho que o coração quer parar. O meu corpo está velho. Estão a mexer-me em tudo. Não querem que eu morra e eu não quero morrer. Os órgãos estão a parar por falta de um coração hábil. Essa bomba, o músculo cardíaco, o miocárdio, esta coisa que bate e bombeia sangue para alimentar o corpo, está querer parar. Mas eu aguento.

Nasci depois da primeira guerra mas antes da grande depressão de 1929. Era menina e não senti a diferença. O país era pobre e não havia grande coisa para desejar. O meu pai levava-me de comboio à cidade e, em chegados, percorríamos as ruas com sorrisos de criança – eu, porque era criança e ele, porque de velho só tinha as mãos – e levava-me ao salão de chá onde me encantavam os chapéus das senhoras que, sentadinhas, conversavam e levavam com delicadeza a borda da chávena a tocar os lábios finos cor de carmim. Mais tarde, fui elegante como elas. Ainda na semana passada fui ao cabeleireiro. Agora fico muito calada quando me sento para que me penteiem. Desde que me aconteceu perder a capacidade de falar não falo com desconhecidos. Mas também para quê, se não me percebem?

Nasceram três bisnetos. Dois rapazes e uma rapariga. Tratam-me por “bisa”, mas já pouco se repete. Já não lhes tricoto vestidos. Nada se perde, tudo se transforma. É a natureza das coisas e desta coisa estranha que é a vida e que eu e o meu pai não entendemos. Ele de mão dada comigo a percorrer as ruas da cidade com sorrisos de criança de cara contra o vento e contra o tempo.

Ainda aqui estou e já me resolveram os estragos – por agora. O meu corpo adormecido, emoldurado por lençóis esterilizados é transportado, já sem pressas, de volta à enfermaria. E eu, que pensava que morria, ainda aqui estou colada a ele. Hei-de morrer um dia.

Mas por enquanto mato eu a morte.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

intemporalidade

pinhole, negativo em papel

Data

Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça


Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

aos que partem



Cântico IV


Tu tens um medo:

Acabar.

Não vês que acabas todo dia.

Que morres no amor.

Na tristeza.

Na dúvida.

No desejo.

Que te renovas todo dia.

No amor.

Na tristeza.

Na dúvida.

No desejo.

Que és sempre outro.

Que és sempre o mesmo.

Que morrerás por idades imensas.

Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

Cecília Meireles

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

(esta é uma história minha e que conto em segunda mão)

Vou começar por falar do meu avô, ele, pai da minha mãe e filho de um republicano e de uma católica. Este homem que nasceu em Afife numa casa de lavoura não muito abastada mas com o seu quinhão, veio em 1907, com oito anos, para o Porto, como era uso na época, para trabalhar nas obras. Os tempos eram difíceis e os rapazes tinham de aprender de pequenos a arte. Claro está que da arte só os que levavam jeito aprendiam. O meu avô não era só jeito, mas fibra, e a tal da arte levou-o a conhecer o mundo. Fez-se homem e fez-se à vida. Era duro e sabia ler. Lia bem demais.
Com ele aprendi a amar os livros e a querer ler o que os outros não liam.
Quando nasci já ele vivia em casa no sossego da família e andava perto dos setenta. Morreu aos oitenta e um, vítima de doença quase prolongada, numa manhã de um Outubro ainda quente.
Era forte e fibroso. Bonito. Lembro-me que se vestia, todas as tardes, com fato completo e botões de punho

Hábitos de uma capital de muitos anos. A casa na Graça, depois Benfica, a Travessa dos Arneiros, a carpintaria de móveis, as noites de teatro, as férias de verão em Afife, a minha mãe pequena, a minha mãe órfã de mãe, a minha mãe namoradeira.

e ia até ao café junto da estação dos caminhos de ferro para a cavaqueira com os companheiros da política. Sempre aprumado. Sempre lavado e cheiroso. À noite, em casa, conversava com o meu pai e quando a minha mãe tentava acrescentar palavra, feminista como pretendia ser, ele respondia em tom solene, muito embora brilhasse uma ponta grossa do orgulho que sentia por ela: "a menina não foi chamada ao assunto e isto é assunto de homens." Respeito era bonito e ele gostava. Quisera que ela fosse professora, médica ou qualquer outra coisa e não, como dizia, "empregada do marido." A minha mãe tonta, como são tontas as raparigas, engravidou de mim aos dezoito anos e não quis continuar a estudar. Casou com o meu pai, que de imediato marchou para Moçambique, e ficou comigo e com o meu avô.
O meu avô dizia-me sempre para fazer mais além, para querer mais além, para ler mais além

Lá em casa ainda (e espero que para sempre) estão nas estantes "Felizmente Há Luar" de Stau Monteiro, "O Judeu" do Santareno e deles outros e uma velhíssima edição de "O Capital". Este está forrado com papel azul-escuro de data desconhecida.
e eu fui mais além da curva da estrada.
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O meu avô, ainda jovem, viu a casa-mãe ser vendida em praça pública. A minha bisavó, após a morte do pai e a fuga do marido para o estrangeiro, viu-se a braços com a casa e quatro filhos. Daí à falência foi um passo. A casa foi vendida ao ferreiro que, por sua vez, anos depois, perdeu a dele também em praça pública. O meu avô já homem propôs rematar a casa do ferreiro com a condição de uma troca, o que foi imediatamente aceite.
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E foi assim que nasci na casa que o meu bisavô construiu e que ainda hoje permanece na família e tem paredes de granito e muitas histórias para contar.
É para lá que vou todos os fins-de-semana, ou melhor, sempre que tenho tempo. Corro para manter aquela casa na família e incutir no meu sobrinho de seis anos esse espírito de lealdade para consigo e para com as raízes.

Não falo de bens materiais, falo da história que se faz a cada momento, em cada pedacinho. Falo da vida e das coisas importantes.
Talvez seja a consciência destes vínculos que me faz falar uma linguagem lá de longe.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

o poder