sexta-feira, 8 de junho de 2007

Era uma vez...

Era tão verde que quase parecia uma sopa verde. Nunca tinha visto uma cor tão indefinida. Hoje seria cinza escuro. Uma sopa cinza feita das cinzas dos teus cigarros seria espantosa.
A mulher da tabacaria da esquina que vendia revistas, flores e molhos de couves teria ficado bastante contente se não a tivesses trocado pelo Sr. Joaquim da sapataria a quem compraste os dez quilos de maçã reineta que estavam em promoção. Ele sabia que Converse era a tua marca preferida.
Anunciei com um enorme prazer a minha chegada. Sentei-me à mesa e o frio passava-me por trás das costas. Enrolei-me na manta da lã churra da única ovelha que ainda nos pertencia. Tu, de cabelo aprumado e trajado de festa, usavas as amarelas. Ficavam-te bem nos pés. Pintei-te, assim de memória, na tua posição de sempre enquanto fumavas e tomavas a tua caneca de café quente. A marca sempre te preocupou. Era Converse a que mais gostavas. Mas havia outras: Delta – horas e horas a olhar para ti a olhares para o castanho muito escuro, ainda no fundo da caneca, mas já frio. Na frente uma sopa verde e muito quente já passada em forma de puré, sem pingo de azeite, embora o azeite fosse verde.
Serviste-me devagar enquanto eu entoava uma canção. Dizias que eu cantava bem. Eras bem-humorado.
A minha bicicleta estava na cozinha ao meu lado, mas ao contrário da sopa, era cor-de-rosa – cor que a sopa nunca poderia ter. Didiapondas estava sentado no selim da bicicleta e olhava intrigado. Fazia sempre gestos estranhos quando te via. “É amoroso!” dizias tu enquanto cuspias o pedaço de batata que tinhas encontrado no pudim. Fizeste-o tão violentamente que ficou esborrachado no vidro da porta ao fundo do corredor. O pudim era de cozido à portuguesa, bem como o gelado, que tinhas a mania de comprar só para me chatear. Mas eu bricava contigo: fazia as malas e partia com todas as embalagens presas por um fio, preso à minha mala. Assim, iam escada a baixo e rua a baixo a tilintar. E tu, vestido com uma t-shirt de manga curta sobre as minhas calças à boca-de-sino que tinhas a mania de usar, corrias desalmado atrás de mim para que pelo menos te deixasse os pudins. Didiapondas ficava em cima da bicicleta como garantia de que eu ia voltar. Garantia essa que tu nunca entendeste. Depois de darmos algumas voltas ao quarteirão entravamos em casa esbaforidos. Sentávamo-nos de novo à mesa e riamos ainda do estranho e raro acontecimento. Começávamos a deixar recados no papel que havia no meio da mesa, tentando cada um escrever as frases viradas para o outro. Já estávamos com fome. Já tínhamos feito o ritual de preliminares e estávamos prontos. Bem no ponto! Perguntavas sempre primeiro se eu queria e eu respondia sempre: “Quero se tu quiseres.” Sorrias e servias-me o valente prato de sopa e para ti punhas a mesma quantidade, sempre igual, sempre bem dividido.
Olhaste-me e disseste: “Hoje a sopa é diferente”. Eu provei e acusei de imediato um leve travo amargo mas de seguida o gosto a verde e depois não sei o quê de doçura (aqui, talvez estivesse o açúcar das tuas mãos). Era divinal. E até hoje não sei o que tinha aquela sopa. Didiapondas, embora não gostasse de ti e talvez nunca viesse a gostar, jamais mo disse. Apesar de ser o meu fiel verme de companhia não seria capaz de delatar fosse quem fosse. Assim, chamei à sopa o meu nome : sopa de maçã reineta.