quarta-feira, 6 de maio de 2009

Roubar palavras

Temos o voo do coração na ponta dos dedos e depressa abrimos a mão que o pendura em silêncio

sem que ninguém se assuste com o bater das asas

Cruel é a tarde de calor absoluto dentro de um caixão bafiento

- E é perversa a forma exagerada como a cidade pendurou ao pescoço seus filamentos de néon enquanto as nuvens ainda fiam a ténue luminosidade do crepúsculo

Cruel é querer mais além quando nos ossos guardamos a essência do voo e na pele a solidão de muitos caminhos

Vivemos com a obsessão de um rio a desaguar no amanhecer

Entre os olhos um fio de metal cortante e a balbuciar, dentro do sonho, as palavras que nunca ousaremos dizer

postas em fuga numa insónia recomeçada pelos alicerces calcários da cidade ou pelos passos gravados nas areias da memória

Só o mar das outras terras é que é belo, dizias

e eu nada sei desses mares por fabricar

Chamaremos nomes às coisas ou poderemos monologar com as paredes de dar-lhes as cores desbotadas das laranjas


A cidade dorme enquanto começo o jogo e antes que a flor de açafrão rompa a pele das pedras

E já é tarde para reverter a crosta da terra
nem que eu viva para pronunciar o teu amargo nome
porque nem mesmo o inflexível rigor da morte exterminará
[o lado escondido das ilhas que amo]
o gelo calado das minhas mãos.



(a partir de Al Berto)

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